Vitor Takayanagi enquanto escritor

Vitor Takayanagi enquanto escritor

Aspirante a escritor postando histórias na internet.

04/05/2021

Voltei! Com outro projeto para vocês irem apoiar no Catarse: a Revista Ignoto de Ficção Especulativa, da Editora Corvus. É uma revista com contos, microcontos, entrevistas e até mesmo receitas, tudo com um toque de fantasia e ficção científ**a (não preocupa que a receita usa principalmente ingredientes terrestres). E, no meio desse monte de coisa, vai sair meu conto “Prioridades”, que analisa as trevas da cobiça humana através de um alienígena que parece feito de miojo.

É uma revista trimestral e dá pra assinar ela pelo Catarse:

https://www.catarse.me/revistaignoto

Vão lá apoiar!

23/02/2021

A ÚLTIMA BRAZUCA

— Nossa! — Exclamou Léo para si mesmo, surpreso, ao puxar a placa de plástico do meio dos escombros.

“Uso obrigatório de máscara”, leu, e ao lado havia o desenho de uma pessoa usando uma máscara facial. Riu, lembrando da pandemia de 2020, quando o maior problema que existia era um viruszinho que matou mais de dez milhões de brasileiros. Uma época mais inocente, antes da guerra, das bombas, da radiação, da invasão chinesa, da invasão americana, da invasão russa, da invasão cubana, da segunda invasão americana e do cataclisma climático decorrente da destruição da Amazônia.

Fazia tempo que não pensava nas antigas convenções de contagem de tempo. Calculou com os oito dedos das mãos, devia ser… 2028? Mais ou menos.

“Parece que foi oitenta anos atrás, não oito.”

Contemplou o céu, sob o forte sol da manhã e suspirou, melancólico. Limpou o suor da testa e voltou a escavar a enorme pilha de entulho na entrada do estádio do Pacaembu, em São Paulo. Há quanto tempo estava ali, naquela tarefa ingrata, uns oito dias? Mais ou menos. Golpeava os destroços com sua picareta, se esforçando tanto fisicamente quando psicologicamente, evitando pensar se ia ter comida amanhã, se a água do lago do parque realmente era potável, se a radiação ia lhe dar um tumor, ou pior, um pé crescendo no meio da testa…

Foi quando o muro rachou e Léo teve que se afastar, fugindo da pequena avalanche que causou. Puxou o pedaço que havia quebrado e viu um pequeno túnel, o suficiente para que passasse rastejando. Finalmente ia entrar no estádio!

“A esperança é a última que morre” — lembrou das palavras da falecida vó Esperança.

Foi obrigado a deixar a picareta e a mochila para trás e se arrastou pelo aperto até o outro lado. Saiu numa parte do pórtico ainda sustentada por uma pilastra solitária e viu um vidro com os dizeres “Museu do Futebol”.

— Achei! — Exclamou, seu grito ecoando pelo estádio, e logo se arrependeu, pois percebeu o pilar tremer.
Respirou fundo e cautelosamente entrou no museu. O impacto da explosão havia deixado uma bagunça, inúmeros quadros com momentos marcantes do futebol brasileiro espalhados no chão, camisetas históricas esfarrapadas e televisores destroçados.

“Cadê as bolas? Aqui não é o museu do futebol?” — Se perguntou, olhando em volta. — “Devia ter ido no museu dos testículos.” — Riu sozinho da própria piada, e suspirou, triste, solitário.

Foi para a próxima sala, mais ampla, mas também mais destruída. Uma das paredes e parte do teto havia desabado e diversos itens futebolísticos estavam espalhados pelo chão, tinha até uma estátua de um jogador fazendo cera. Apenas um mostruário ainda se encontrava de pé, com uma bola velha, murcha, bege, cujo padrão das tiras mais parecia com uma bola de vôlei que de futebol.

— “Bola usada no primeiro Campeonato Paulista…” — Leu em voz alta. Olhou ao lado e percebeu que havia outro pedestal, este destruído, mas na placa estava escrito “Bola usada na primeira Taça Brasil.” Acompanhou a parede, achando outras placas e até pedaços de bolas, mas o rastro terminava numa enorme pilha de escombros.

Começou a escavar com as mãos, se machucando, sangrando nos dedos, mas ansioso, determinado, sabia que ela ia estar ali.

E estava.

A brazuca, a bola usada na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, em condições perfeitas, como se fosse nova, sequer estava murcha. Nessa hora, teve certeza que seu plano ia dar certo.

Com reverência, pegou a bola, e um brilho intenso surgiu de baixo dela, do meio dos escombros, assustando-o. Protegendo os olhos, se agachou e percebeu que era uma uma forma tubular de um amarelo escandalosamente fosforescente.

“Uma chuteira?”

Tentou puxá-la, curioso, mas foi surpreendido, a chuteira se levantou sozinha, estava calçando um pé, um pé que estava preso à testa de um homem estranho, com a pele esverdeada, os olhos vazios e um líquido escuro vazando pelos ouvidos e boca.

Um mutante!

Sem esperar, Léo fugiu, a criatura no seu encalço, pra fora do museu, e quando viu o pilar, teve uma idéia. Soltou a bola e a chutou, mirando no pilar, acreditando que conseguiria soterrar seu perseguidor. Mas, como todos os chutes que deu em vida, a bola foi na direção completamente errada, girando toda torta para o gramado. Após um suspiro frustrado, Léo foi buscá-la, com o mutante logo atrás, e ele tinha certeza que ouviu uma risadinha de escárnio vinda do monstro, mas que diabos!

Conseguiu pegar a bola na quarta tentativa e continuou em disparada pelo gramado, procurando alguma saída, até encontrar um portão em perfeitas condições ao lado da rampa da arquibancada, do outro lado do estádio, pronta para ser usada como acesso por qualquer visitante do museu que tivesse se dado ao trabalho de circundar o estádio antes de sair cavando no lugar mais difícil possível.

Escapou para a avenida, um congestionamento de veículos destruídos, um retrato da cidade no momento da explosão. Andou agachado, tentando despistar o mutante e procurando algum carro para fugir. Achou um inteiro o bastante, olhou pela janela e, por sorte, a chave ainda estava lá, assim como os restos mortais do motorista. Mas a maior sorte de todas era o câmbio automático, levando o repetidamente reprovado no exame prático Léo a vibrar, feliz.

Colocou a bola de lado e, usando um pedaço de concreto, quebrou o vidro e abriu a porta. Em seguida, correu atrás da bola, que rolou ladeira abaixo, voltou, entrou no carro, e fugiu, aliviado, atropelando o mutante e as bicicletas abandonadas na calçada.

Após três minutos a mais que o aplicativo de GPS havia prometido, estava de volta ao seu esconderijo, o laboratório de experimentos práticos de física quântica, na faculdade de homeopatia holística.

Ia realizar seu experimento!

Colocou a bola no meio da máquina que passou os últimos… oito meses? Mais ou menos, construindo, e a ligou. As luzes de LED desnecessárias que havia instalado acenderam, fazendo a máquina parecer ainda mais radical, e as pequenas bobinas de Tesla dispararam raios na bola, que começou a tremer, brilhar, levitar!

Olhou para a tela do notebook e sentiu lágrimas se formarem, sua teoria estava correta! A camada de grafeno, estruturada hexagonalmente na superfície da bola, feita para torná-la mais resistente, também protegia-a de distorções do espaço-tempo, criando um objeto que poderia viajar para o passado e, assim, mudar a história! A realidade!

Agora, só precisava programar a data e o local para quando e onde ela devia ir, o lugar e o momento exato para…

Uma enorme coluna de luz atravessou o teto e atingiu a máquina, causando uma explosão, e Léo voou para trás, batendo na parede. Quando abriu os olhos, viu duas pessoas olhando pra ele, não, não eram pessoas, eram baixas e cabeçudas demais, a pele cinza, os olhos grandes, não era possível, mas deviam ser…

— HUMANO, DETECTAMOS UMA ANOMALIA NO TECIDO GRAVITACIONAL.

Alienígenas!

— A INSTABILIDADE DIMENSIONAL DECORRENTE DAS REPETIDAS EXPLOSÕES NUCLEARES DA GUERRA TERRESTRE FRAGILIZOU A REALIDADE.

— NÃO PODEMOS DEIXAR ESTE GLOBO DESPORTIVO ALTERAR O ESPAÇO-TEMPO, AS CONSEQUÊNCIAS SERÃO DESASTROSAS.

— DESISTA DESSE CAMINHO INFRUTÍFERO E NOCIVO.

Ainda atordoado, ainda com dores no corpo, ainda cansado do encontro com o mutante, ainda com sangue nos dedos, Léo se levantou, lentamente. Bateu a poeira das pernas, dos ombros, dos braços, do cabelo. Encheu o peito e encarou os alienígenas, determinado.

— Eu me alistei no primeiro dia. Queria lutar pelo meu país, pela minha família, pelas minhas crenças e, principalmente, por mim mesmo. Queria matar um general inimigo, ou até mesmo o presidente, me tornar um herói. — Sorriu, mas um sorriso triste, arrependido — Levei um tiro na mão na priemeira semana. Voltei pra casa, humilhado, mas ainda vivo, melhor que muitos, que voltavam como uma etiquetinha de identif**ação e uma bandeira dobrada. E aí, veio a bomba. Perdi tudo. Minha família, amigos, casa, país, minha vida! Foi quando eu entendi. — Soltou um longo suspiro. — Entendi que guerras não fazem heróis, apenas cadáveres. Entendi como eu não valia nada, era só uma estatística para um grupinho de babacas que resolveram brigar por nada e matar toda o planeta. É por isso que eu…

— BLÁBLÁBLÁ, GUERRA NUNCA MUDA, BLÁBLÁBLÁ. TADINHO DE VOCÊ.

— NÃO É PROBLEMA NOSSO SE VOCÊS, PRIMATAS IMBECIS, SÃO INCAPAZES DE ESTABELECER RELAÇÕES EMPÁTICAS ENTRE SI.

— LEVAREMOS O GLOBO DESPORTIVO CONOSCO. — O alienígena pegou a bola do chão. — NÃO VAMOS DEIXAR VOCÊ DESTRUIR A REALIDADE, HUMANO.

Borbulhando de raiva e vergonha, Léo sentiu um peso no estômago, suas tripas puxando-o pra baixo, pro chão, pra ele rastejar feito a minhoca impotente que era, que o mundo o tornou.

Mas ele não era uma minhoca. Ele podia reagir.

Não tinha muito mais a perder, mesmo.

— Humano, não. Brasileiro. E brasileiro não desiste nunca!

Chutou a bola das mãos do alienígena, mas sem muita força, um toquinho com a pontinha do pé, calculado, o suficiente, ajeitou-a com o joelho pra cima, acompanhou o arco dela no ar e pulou para dar uma bicicleta espetacular, digna de replay, que deixaria seu xará Leônidas da Silva orgulhoso, um chute que ativou a reverberação kinemática da estrutura sub-atômica da pelota estabelecida pela sua máquina e um buraco abriu no ar, um portal no espaço-tempo, o ponto por onde a bola viajou rumo ao passado, e Léo torceu, torceu como um brasileiro torce quando quer que uma bola chutada vá na direção certa, que ela fosse para onde e quando precisava que ela fosse.

Fortaleza, Ceará, estádio do Castelão, 2014. Neymar se preparou para receber o passe, vindo do alto, ia matar no peito, quando percebeu um brilho no ar, a bola sumiu? Estava muito cansado, concluiu, pois ali estava a bola, calculou errado a trajetória, correu mais um pouco para recebê-la com os pés, com suas chuteiras amarelas exclusivas, dando um giro em seguida e evitando a entrada nas suas costas do colombiano que o marcava, e continuou a jogar a Copa do Mundo, como se nunca tivesse sofrido uma fratura na coluna, já que nunca a sofreu mesmo.

Foi assim que a história mudou e Neymar pode jogar contra a Alemanha, e o Brasil perdeu só de 3 a 1.

O ressurgimento do fascismo, a pandemia de 2020, a terceira guerra mundial, as bombas atômicas e o cataclisma climático aconteceram, invariavelmente. Assim como a invasão alienígena, mais tarde.

Mas a última brazuca salvou o orgulho do brasileiro.

FIM

09/02/2021

A coletânea Além do Olimpo contém contos que contam histórias no decorrer da história com mitologia grega! E não estou falando de uma coisa óbvia tipo “a influência de deuses gregos na guerra de Tróia” ou “como os deuses gregos afetaram a saga das doze casas dos cavaleiros de ouro”, estou falando de diferentes eventos históricos em diferentes lugares!

Interessou? Vai lá ajudar!

https://www.catarse.me/mitologiagrega

Ah, sim, tem um conto meu lá também.

05/02/2021

Começou a campanha da coletânea Além do Olimpo, publicada pela Psiu Editora, no Catarse! Tem um conto meu! Vão lá ajudar!

https://www.catarse.me/mitologiagrega

03/02/2021

CAPACETINHO VERMELHO

— Mãe, voltei! — Exclamou Camila, ao voltar pra pizzaria.

Aos dezessete, Camila sempre foi baixinha e magricela, mas ninguém diria que possui uma aparência frágil. Seus longos e vastos cabelos encaracolados, que cultivou com orgulho desde criança, revelavam muito sobre sua determinação, principalmente quando pensamos no trabalho que dá cuidar de tamanha cabeleira. Mesmo amassados dentro do capacete de bicicleta vermelho, as mechas que esvoaçavam para fora eram impressionantes.

Andou até o balcão e perguntou:

— A pizza da dona Marlene tá pronta?

— Ela não pediu hoje! — Berrou Sônia, sua mãe, da cozinha.

Camila estranhou a resposta. Pegou o celular pra conferir e era mesmo terça-feira, dia que a dona Marlene sempre pedia pizza.

— Pois é, menina, não sei o que aconteceu. — Disse a mãe, vindo do fundo. — Pior que até tinha deixado pronta pra assar, mas se ela não ligou até agora, deve ter jantado outra coisa.

— Como o quê?

— Sei lá, arroz com feijão? Macarronada? Nem todo mundo vive de pizza que nem você, menina! — Deu um tapinha brincalhão no capacete de Camila. — Aproveita que não tem mais pedido e vai estudar, você tem vestibular este ano!

— Tá, já vou… — Disse Camila, quando viu o jornal terminando na TV. Pensou na dona Marlene, com mais de oitenta anos, morando sozinha, e bateu uma preocupação estranha. Foi quando tomou uma decisão.

— Mãe, quanto tempo demora pra assar a pizza dela? Quinze minutos?

— Pra menos, por quê? — Desconfiou a mãe.

— Assa pra mim.

— Vai fazer o quê? Comer?

Camila pensou no sabor que a dona Marlene sempre pedia, atum, e o cheiro de chulé que empesteava a mochila toda terça. Sentiu um pouco de ânsia.

— Sim, tô morrendo de fome hoje. — Mentiu.

— De pizza de atum — respondeu a mãe, sem acreditar.

— Sim, delícia. — Camila mentiu ainda mais intensamente.

As duas se encararam e a mãe percebeu que a filha não ia mudar de idéia. Soltou um longo suspiro e voltou para a cozinha.

— Tá, o forno tá parado, ia jogar fora mesmo, vou assar rapidinho.

— Brigado, mãe, te amo!

— Mas se ela já tiver jantado, você vai comer essa pizza inteira!

Após treze minutos e vinte e seis segundos, a pizza foi colocada na caixa, a caixa na mochila, a mochila nas costas de Camila, a Camila na bicicleta e, em menos de sete minutos, ela estava no prédio da dona Marlene. Um edifício antigo, de apenas seis andares e sem porteiro, mas que Camila conhecia bem pois praticamente todos os moradores eram clientes da pizzaria.

Apertou o número 32 no interfone e esperou, ansiosa. O tempo passou, sem resposta. Sentiu o coração bater mais rápido, e apertou o botão mais uma vez, nada. Ia apertar de novo, quando…

— Boa noite, Camila, tudo bem?

Ela quase caiu no chão com o susto.

— Ah! Seu Benjamim! Boa noite! — Cumprimentou, ao se recuperar.

— Nossa, menina, que susto foi esse?

— Desculpa, seu Benjamim, é que eu chamei a dona Marlene, mas ela ainda não respondeu — ela explicou, apontando para o interfone.

— Ah, tá, ela não ouviu?

— Pode ser, acontece às vezes.

— Então, eu entrego! Qualquer coisa, deixo na porta dela.

A jovem hesitou, e o homem percebeu.

— Não preocupa, sou gordo, mas não vou comer a pizza dela! — Ele exclamou, rindo e batendo na própria barriga.

— Não, seu Benjamim, não é isso. — Respondeu Camila, com um sorriso amarelo. Não queria falar sobre a pizza não ter sido solicitada, mas decidiu ser sincera sobre sua real motivação: — A verdade é que eu tô preocupada com ela, sabe? Quero ter certeza que ela tá bem.

O homem a encarou e percebeu que Camila não ia mudar de idéia.

— Eu abro pra você, então. — Disse o seu Benjamim, tirando a chave do bolso. — Sobe lá, a campainha ela vai ouvir!

— Obrigada, seu Benjamim! — Agradeceu Camila, feliz pela ajuda.

Ao chegar no terceiro andar, Camila olhou para a porta no final do corredor e sentiu medo. Virou-se para pedir ajuda ao seu Benjamim, mas o elevador já tinha ido embora. Dona Marlene era a única moradora do andar, não tinha mais ninguém ali perto. Se alguma coisa aconteceu com a senhora, era Camila quem ia ter que socorrê-la. O silêncio a oprimia. O vento frio a arrepiava. As batidas do coração ecoavam na sua cabeça.

Mas Camila realmente queria ver a dona Marlene. Com um grande esforço, deu o primeiro passo, o segundo, e cada um era mais fácil que o anterior. Quando finalmente chegou à porta, se sentia melhor, pronta para o que quer que acontecesse. Respirou fundo e apertou a campainha.

Para seu grande alívio, ouviu um barulho vindo de dentro.

“Ela tá bem!” — Pensou, sorrindo e sentindo algumas lágrimas de formando. Mais calma, preparou para entregar a pizza, com a mochila à sua frente e a mão no zíper.

A porta, porém, não se abriu. Nenhum outro som veio do apartamento. O alívio de Camila começou a sumir. Será que tinha imaginado aquele barulho? Apertou a campainha mais uma vez. Chamou a dona Marlene. Bateu na porta. Assobiou. Ia apertar a campainha de novo quando a porta finalmente abriu!

Mas, de tudo que estava pronta para enfrentar, o estranho homem barbudo que apareceu não estava na lista.

— Que foi? — Ele sussurrou, irritado, e fechando a porta atrás de si. Não era particularmente alto ou grande, mas perante a miúda entregadora, era uma figura intimidadora.

— Ah, boa noite, senhor! — Cumprimentou Camila, tentando se acalmar do novo susto. — Pizza pra dona Marlene!

— Não pedi… não pedimos nenhuma pizza.

Alguma coisa estava errada. Camila decidiu arriscar com uma mentira:

— Mas nós recebemos o pedido dela, como ela sempre faz…

— Não queremos pizza. Vai embora.

Aquelas duas palavras fizeram toda a ansiedade de Camila sumir, e em seu lugar veio uma poderosíssima indignação.

— Ah, mas eu tive que trazer até aqui! — Exclamou, na sua voz “cliente mal-educado merece entregador mal-educado”. — Não posso voltar com a pizza!

— Problema seu, não pedimos pizza nenhuma! — Ele disse, levantando a voz pela primeira vez.

— Cadê a dona Marlene? Ela sempre pagou direitinho! Você é o que dela?

A pergunta o pegou de surpresa.

— Sou o, hum, o filho dela. — Respondeu, gaguejando.

— Mas você não parece nada com ela. — Camila disse, sem pensar, a boca mais rápida que o cérebro. Em qualquer outra situação, teria se sentido mal de ter falado aquilo, pois tinha plena consciência que filhos nem sempre eram parecidos com os pais e que não é pra f**ar apontando as diferenças. Ela mesma tinha a pele um pouco mais escura, o rosto mais afinado e os olhos mais claros que a mãe.

Só que aquele homem era tão diferente da dona Marlene que a boa educação da Camila deu passagem para a sua desconfiança e ela não se importou de ter sido rude.

— É, eu, ah, puxei mais o meu pai. — Ele gaguejou de novo, deixando-a ainda mais cismada.

— É que… seus olhos. Que olhos mais escuros, você tem. — Ela disse, e o homem estranhou. — A dona Marlene tem olhos claros, aquele óculos grossos aumentam eles, dá pra ver bem o olho azul dela.

— Sim, mas… eu puxei meu pai.

— Seu cabelo também, que cabelos mais pretos você tem! A dona Marlene é grisalhinha, mas dá pra ver que ela era loira. — Sem dar tempo dele responder, continuou: — E que nariz mais arredondado e achatado você tem! O nariz da dona Marlene é bem fininho, meio ossudo. Ela mesma, é toda magrinha de rosto, e você…

— Tá me chamando de gordo?

— Não, só que… vocês são bem diferentes. Me conta uma coisa, de onde da Europa que seus pais vieram?

Outra hesitação dele, mas logo sua confusão virou raiva:

— Da França! O que te importa? Vai embora logo!

— Que coisa! — Com a camiseta da dona Marlene durante a última Copa do Mundo nítida na sua memória, Camila urrou: — Que ela veio da Alemanha!

Camila pulou pra frente e, com a ajuda do capacete, acertou uma cabeçada no nariz arredondado e achatado do homem, que caiu para trás, e em seguida chutou-o na canela. Largou a mochila no chão e saiu em disparada pelo corredor gritando:

— Fogo! Alguém! Fogo! Incêndio! — Berrou, lembrando a lição que aprendeu do avô, que ladrão ninguém quer ver, mas todo mundo aprecia um fogaréu.

Estava alcançando o elevador quando sentiu um puxão no cabelo e caiu para trás. O homem pulou em cima dela e a socou no rosto, doendo muito. Camila começou a se debater e chutar, tentando afastá-lo, desesperada, mas ele era bem mais forte, já estava preparando outro soco quando um barulho metálico ecoou no corredor e ele despencou, desacordado.

Era o seu Benjamim com um extintor de incêndio.

— Camila! Você está bem? O que aconteceu?

A única coisa que Camila conseguiu fazer foi chorar nos braços dele.

Meia hora depois, amparada pela mãe enquanto era atendida por um paramédico e conversava com um policial, Camila entendeu o que tinha acontecido. O homem era um encanador que visitou a dona Marlene naquela tarde e, vendo a situação solitária dela e os bens no apartamento, decidiu voltar depois, fingindo ter esquecido uma ferramenta, para prendê-la no armário e roubar o que desse. Inclusive, encontraram a dona Marlene, amarrada e amordaçada, mas logo a libertaram e estavam atendendo-a também.

O surgimento de Camila pegou o assaltante de surpresa, que tentou fingir que não havia ninguém no apartamento, mas logo percebeu que aquela entregadora de pizzas não ia mudar de idéia.

Quanto ao seu Benjamim, a preocupação de Camila com dona Marlene não saía de sua mente e decidiu ir ver se estava tudo bem. Esperando pelo elevador, ouviu o grito de fogo e, desesperado, pegou o extintor de incêndio e desceu as escadas. Ao ver o homem em cima da entregadora, agiu sem pensar e golpeou-o na cabeça.

— Camila! Querida! Obrigada! — Exclamou dona Marlene, indo abraçá-la.

— De nada, dona Marlene! Fico feliz… ai!

A senhora se afastou ao ouvir o gemido da garota.

— Aqui… dói. — Disse Camila, apontando onde havia sido socada.

Enfurecida, a idosa exclamou um palavrão em alemão que, mesmo ninguém mais ali sabendo a língua, todos entenderam o que ela quis dizer. Quando as pessoas querem xingar, xingam na língua natal. Em seguida, dona Marlene perguntou ao policial:

— Onde já se viu, machucar uma menina tão bonita! Já prendeu ele?

— Sim, minha senhora, já abri o boletim e…

— Bom mesmo! — Virou-se para Camila — Obrigada de novo, querida! E você até trouxe minha pizza! Eu nem tinha pedido!

— Ah, a senhora não ia perder a pizza da terça, não é?

— Não mesmo! — Virou-se para o policial — A melhor pizza do bairro! — Virou-se para Sônia, que sorria. — Melhor pizza! E a melhor entregadora! Parabéns, Sônia!

— Obrigada, dona Marlene, ela é mesmo meu orgulho!

Camila queria sumir de vergonha.

A senhora abriu a caixa ali mesmo e, mostrando muito mais destreza que a idade indicava, pegou um pedaço e mordeu, com gosto.

— Dona Marlene, não tá fria? — Perguntou Camila, preocupada.

— Tá de-li-ci-o-sa! Obrigada, minha menina! — A senhora virou a caixa na direção da garota e ofereceu: — Quer um?

O cheiro de chulé era ainda pior frio. Mesmo assim, Camila pegou um pedaço, desajeitada, e mordeu, derrubando atum no chão.

— É a melhor pizza que já comi. — Disse, com toda sinceridade do mundo.

FIM

20/01/2021

Edelmira, uma brasileira

Edelmira estava exausta de tanto chorar. Acompanhar o velório coletivo do pai, mãe, avô, avó, outra avó, irmão, irmã, marido, sogro, sogra, cunhados, três tios, onze primos e mais sete agregados da família não foi fácil. Vítimas do coronavírus, “a gripezinha”, como todos, inclusive ela, zombavam durante o fatídico churrascão do campeonato anual de cuspe em altura dos Barbosa.

Barbosas que, nas semanas seguintes, foram adoecendo e morrendo.

Edelmira foi a única sobrevivente.

Agora, estava de volta à casa dos pais, completamente vazia, pois até o cachorro morreu ao ser atropelado enquanto corria atrás da ambulância levando seis Barbosas. Se jogou no sofá e, com o pouco de força que ainda tinha, ligou a televisão. Começava um pronunciamento oficial do presidente da república:

— Boa noite. Como vocês sabem, a mídia mentirosa f**a alardeando essa gripezinha ridícula só pra me atacar pessoalmente, a mim única e exclusivamente! Tem até repórter canalha pedindo impeachment, sendo que não cometi nenhum crime! Esse povo fracote que morreu pra gripezinha comunista? Não é culpa minha, tá oquei? E, pra provar que ela é uma gripezinha mentirosa, eu contraí ela agora de manhã e já sarei, graças à cloroquina. — Um assessor aparece ao seu lado e exibe um frasco do remédio para a câmera. — Mas a mídia canalha comunista mentirosa continua duvidando de mim, só de mim, única e exclusivamente, então vim provar a todos que estou curado e a cloroquina funciona.

O presidente então lambe o próprio dedo e enfia-o com força no nariz do assessor, que tenta f**ar impassível, mas seu desconforto é aparente. Após girá-lo por mais de um minuto, o presidente tira e limpa o dedo no terno do assessor, abre o frasco, vira um punhado de cápsulas na mão e força elas na boca do outro, segurando o nariz dele para obrigá-lo a engolir tudo.

— Você está bem?

— Estou… ótimo… senhor presidente… obrigado. — O assessor respondeu, saindo para o lado. Ele morreu poucas horas depois, mas como foi determinado que foi devido a causas pré-existentes, não foi aberta uma investigação.

— Viu só? Cloroquina funciona, tá oquei? Quem acredita nessa gripezinha comunista ridícula canalha mentirosa comunista é um traidor!

O ódio que Edelmira sentiu ao ouvir essas palavras foi revigorante. Ergueu-se, apontou o controle remoto para a televisão e declarou para o mundo, num tom contido, mas determinado:

— O traidor é você, desgraçado.

Pomposamente desligou o aparelho, tremendo de raiva, como se uma câmera desse um close no seu rosto antes da chamada para os comerciais.

No dia seguinte, ainda alimentada pela fúria, foi até o shopping, onde, após provar que era uma pessoa sã e capaz ao tirar a máscara facial e beijar uma bíblia, pôde comprar uma magnum. Voltou para casa e chamou um entregador de aplicativo, que chegou quatro minutos atrasado e ainda teve a audácia de reclamar do peso da caixa onde Edelmira se escondia, e por isso não ia ganhar uma gorjeta, onde já se viu?

Após sessenta e oito horas de pedaladas, o entregador deixou a caixa “perto da estátua esquisita com os etês segurando lanças” na praça dos três poderes, em Brasília, e se foi, feliz pelos onze reais que ganhou com a entrega.

Fedendo a suor, urina e açaí, Edelmira saiu da caixa e se viu cercada por uma multidão de dezoito pessoas, eram manifestantes pedindo a volta da escravidão e da poliomielite. Como vestia a camiseta da seleção que ganhou de brinde na loja de armas de fogo, facilmente se misturou a eles. Foi quando começaram a aplaudir, era o presidente chegando para prestigiar o evento.

Edelmira sacou sua arma, aproveitando que muitos faziam o mesmo para atirar pra cima ou no boneco de um indígena tremendamente realista que alguém havia amarrado a um tronco no meio da praça, doação da indústria pecuária. Avançou pela multidão, chegando cada vez mais perto, focada na sua missão, determinada em sua vingança. Encontrou o presidente enfiando o dedo babado no nariz de um homem, ato que virou um ritual de batismo entre seus seguidores. Por sorte, estavam concentrados em fazer pose para as câmeras, ninguém percebeu ela se posicionando alguns metros atrás dele.

Ela ergueu o revólver, pesado, se esforçando para equilibrá-lo. Mirou na nuca dele. Inspirou com calma. Soltou o ar e apertou o gatilho.

Infelizmente, o coice do tiro foi mais forte que esperava e a bala não foi aonde mirou, voando mais para baixo, entrando pela calça do presidente e explodindo para fora da sua braguilha. Sangue jorrou para todo lado, pequenos órgãos ovais quicaram e rolaram pelo chão, e um pedaço de carne com um formato similar ao de um cogumelo, não tão grande (abaixo da média, até), acertou em cheio a lente de uma câmera, revelando ao vivo o excelentíssimo para todo o Brasil, morto.

No dia seguinte, lia-se em todos os jornais do país: “Impeachment aprovado em um dia.”

Afinal de contas, onde já se viu um presidente sem um pinto?

FIM

19/01/2021

Bem-vindes à minha página do Facebook enquanto escritor!

Publicarei aqui contos de tempos em tempos, espero que gostem! E, se não gostarem, fiquem à vontade para me criticar, i̵s̵s̵o̵ ̵g̵e̵r̵a̵ ̵e̵n̵g̵a̵j̵a̵m̵e̵n̵t̵o̵ ̵n̵o̵ ̵a̵l̵g̵o̵r̵i̵t̵m̵o̵ isso me ajuda a melhorar enquanto escritor!

Boa leitura!