MUNDO Desejante

Revista dominical com artes, ficção, artigos e crônicas de um mundo desejante.

16/06/2024

Hoje, vamos p**ar. Voltamos no próximo domingo.

09/06/2024

MUNDO DESEJANTE – DOMINGO, 09 DE JUNHO DE 2024

AGOSTO DEL 2019
Por CARLA BIANCO, com arte de CARMEN NOVO

PURGATÓRIO
Por CIBELE LOPRESTI, com arte de ANA BRENGEL

A NÉVOA LÁ FORA, 20 - capítulo final -, "OS MUROS INVISÍVEIS"
Por ANDRÉ RESENDE, com arte de MARCIA CYMBALISTA

MÍTICA ILHA
Por DANIELA PACE DEVISATE, com arte de DANIELA VICENTINI

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AGOSTO DEL 2019
Por CARLA BIANCO, com arte de CARMEN NOVO

“Te quiero de mil modos.
Te quiero sobre todo”(1)

HOLA CLARA, ¿CÓMO ESTÁS?
Intentaré seguir hablando, ahora a través de la letra escrita. Como si estuviera contigo, cara a cara.
Ambos sabemos que no es el mejor momento. Ya me lo repetiste. Sostener esa posición, a mí me resulta más difícil.
Ya pasaron varios días, por eso tomé esta iniciativa.
Prefiero, ya me conoces, hablar buscando acercarme., en lugar de organizarme antes de intentarlo.
Ya sé que entre lo espontáneo y lo calculado hay un puente. En mi caso sigue en construcción.
El caso es que al escribir logro mostrarme mejor. Por favor, no te confundas. Cuando te tengo frente a mí, no me escondo con intención. Sino que la ansiedad de ser como supongo que tú esperas, me hace la trampa.
Cuando reacciono, muchas veces todo ya se mezcló y me siento en el casillero número uno.

“Porque todos, de algún lado ya venimos averiados” (2)

Da trabajo una relación, lleva tiempo y no viene con garantías. Ni hablar, lo vamos aprendiendo.
Charlar contigo y sentir tu risa, me hacen falta.

“Cercana está tu mirada, lejano tu corazón”(3)

Yo se que para vos es más fácil hablar de todo lo que tenemos para mejorar, y que te cuesta más decir que lo quieres hacer conmigo. A mi me duele cuando no me incluyes, cuando no me tienes en cuenta.
Ojo, una cosa es que lo quieras resolver tú, y otra muy distinta es que no cuentes con la posibilidad de compartirlo. De que nos acompañemos.
Cómo se entiende que quieres que esté y cuando me acerco me evalúas o me corriges? Me quedo, en ese caso, con la impresión de que estoy fuera de fecha, o de foco. Me molesta mucho, es así. Pero quién no? En tu silencio puede haber enojo también.
Clara, de verdad, afloja un poquito el ideal, los dos somos realmente humanos. Cuando caminamos uno al lado del otro, la pasamos lindo, disfrutamos de lo simple y fluimos.
Porqué le estamos dando tanto de nuestro tiempo a diferencias que podemos limar y educar?
¿Vamos a dejar que nos ganen la partida? Les vamos a seguir dando tanto espacio? Y si, juntos, hacemos más sencillo el tema? Yo estoy, contá conmigo.
Te espero a cenar, no lo pienses dos veces. Tu perfume y tus caricias son un ingrediente sin sustituto en la receta de cada día.

“Si quisiera decirte lo más bello que evoco usaría tu nombre, si no te ofendes por el piropo”(3)

Un abrazo
Pablo

-(1) Me haces bien. Jorge Drexler
-(2) Tu ve. Kevin Johansen
-(3) Piropo. Jaime Ross

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PURGATÓRIO
Por CIBELE LOPRESTI, com arte de ANA BRENGEL

VOU PARA O PURGATÓRIO pelas vinganças sutis e cruéis que promovi naqueles que não me devolveram livros.
Ao longo da vida, foram poucos os livros que saíram de minha estante para mãos alheias. Não, minto. Preciso refazer o discurso sobre mim.
Ao longo da vida, foram muitos os livros que passaram pela minha estante e, depois de lidos, foram para mãos alheias. Afinal, livro nasceu para circular, para fazer acender toda gente. Entretanto, alguns livros aqui de casa são retratos três por quatro colados no documento de identidade. E, pela lei, não se pode transferir identidade. Estes livros identitários são poucos e somente eles mereceram planos de resgate sutis e, por vezes, cruéis.
A primeira ocorrência se deu logo que emprestei aquele da menina que crescia e descrescia, que chorava até se afogar e que, às vezes, conseguia passar por debaixo da porta fechada. Meu primeiro livro de capa dura! A menina da história parecia comigo, foi o que disse meu tio ao me entregá-lo de presente.
A amiga da escola mais sorridente, ao vê-lo, disse posso levar para ler? Como eu a admirava de maneira sobrenatural, ouvi quer ser minha melhor amiga? E ela levou minha identidade.
Passaram-se dias e semanas, e eu esperei que, na escola, ela viesse conversar comigo, me contar como a menina do livro é realmente legal e como ela já se sentia a melhor amiga de mim. Mas isso não aconteceu. Melancólica e ressentida, decidi virar o jogo.
Aos poucos fui me achegando. Na primeira semana, fui à sua casa, apertei a campainha e esperei que ela viesse. Quando ela apareceu, como quem passa por acaso, pedi educadamente que ela me deixasse fazer xixi, pois estava muito aflita e minha casa era longe. Ela, muito educada, mas quase fria, disse, claro!
Na semana seguinte, foram dois motivos diferentes para apertar a campainha. Na terceira semana, três motivos. E assim foi até que no domingo da sétima semana a mãe dela me convidou para almoçar. Na segunda-feira da oitava semana, na escola, eu não me desgrudava dela. Ela, constrangida, não conseguia se desvencilhar da minha presença.
Foi aí que certo dia, ela e a sua mãe apertaram a campainha de minha casa. Minha mãe, surpresa, convidou-as a sentar no sofá. A mãe dela pausadamente contou que a menina sorridente mudaria de sala, pois nossa amizade estava nos atrapalhando mutuamente nos estudos. Pensei vá, mas devolva minha identidade. Como quem ouve a sentença já promulgada há tempos, a mãe da menina tira o livro da bolsa, agradece o empréstimo e as duas se retiram. Nunca mais a procurei ou esperei que me procurasse.
Ao longo de minha vida, aconteceram reincidências, emprestei outros livros identitários e precisei lançar mão de estratégias para reavê-los. Embora eu ainda me sinta impedida de contar algumas delas, consigo contar que aos poucos tenho aprendido a pedir o que me é de direito de volta ou simplesmente dito não quando me pedem o que não devem.

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[A NÉVOA LÁ FORA, 20 - capítulo final]. "OS MUROS INVISÍVEIS"
Por ANDRÉ RES(ENDE), com arte de MARCIA CYMBALISTA

"suspiro e olho: no sonho eu sou."

AINDA MADRUGADA escuto uma canção por perto, desde menino: um frevo de bloco.
As cantoras-pastoras recifenses ressoam uma passagem, repetindo: "olhai, olhai. Admirai como isso é bom, é bom demais. "Olhai, olhai. Admirai como isso é bom, é bom demais ."
Somente essa passagem do frevo que escuto dentro do escuro silencioso da noite com madrugada.
Nada mais escuto.
De olhos fechados, acordado - não estou sonhando -, ouço o coro de pastoras, vozes gasguitas e mansas, não alvoroçadas: "olhai, olhai. Admirai como isso é bom, é bom demais. Olhai, olhai. Admirai como isso é bom, é bom demais." Que eu ouvisse o coral de pastoras, em algum lugar de Recife, faria sentido. Despertar em outras cidades, mínimo três mil quilômetros - e além -, ainda o dia vindo, mundo afora...
De onde vem essa música?
Que devo, desde sempre - e ainda - olhar e admirar?
Não foi daí que surgiu "Ô,Ô.Ô,Ô", peça colorida, com personagens do carnaval recifense, da cultura pernambucana, da esquina de minha infância, de onde sou, de onde eu sou, desde sempre, embora, de outra maneira - em lugar de festivas, alegres e cantantes-, silenciosas, envolvidas em seus passos e movimentos e respondem com evoluções.
As pastoras estão silenciosas, quando as luzes são acesas.
Que devo, desde sempre - e ainda - olhar e admirar?
Recordações.
Da sexta para sábado, eu ouvia o coro de pastoras cantar.
Despertava de olhos fechados, ouvia o coral, sem fazer ideia onde estariam, por que eu, somente eu, ouvia o trecho da canção, e nada mais, ninguém mais.
Ouve alguma música?, perguntava, ainda pergunto.
Não.
Tomei como mensagem dirigida a mim. Ao simples eu sou, com nada mais acrescentado.
Olhai, olhai, Otelo. Admirai como isso é bom, é bom demais.
Que devo, desde sempre - e ainda - olhar e admirar?
A vida.
Que é bom, bom demais, é a vida, Otelo. Desde cedo. Por ter, desde cedo, escolhido ler e escrever, viajar e sonhar.
Intelectual orgânico do ócio criativo que sabe quem é, de onde vem. Que p**a e segue para depois dos muros invisiveis e imaginários. Criados, em mim, pelo mais além do simplesmente eu sou, para pôr limites em minha existência, a partir de uma fantasia que se construiu, de que minha mãe havia dito para p**ar os muros encontrados em meu caminho.
Que os muros foram erguidos, em mim - não se sabe bem por quem, nem quando, para desestimular de ver mais longe, mais além, por dentro.
Para pôr algo mais ao simples eu sou, que é suficiente, sem acréscimos.
Muros invisíveis, imaginários, imaginados. Criados com barreiras e pichações para pôr limites, mas que, para além, mais além, além, enchem meu quem sou de entulho.
Não me intimido, sempre.
Não é para me sentir vazio, sendo simplesmente, como um sopro me diz, eu sou. Sem acréscimos.
Onde quer que eu ande, no escuro, ouço personagens do carnaval recifense: caboclos de lança, caboclinhos, pastoras, maracatus, ...
Nesta peça, os sinos do maracatu rural chacoalham, me sacodem, se anunciam alto.
Quem é?
Quem está aí?
O caboclo badala seus chocalhos no escuro, até que uma luz cai sobre ele. Veio de Timbaúba, como veio meu pai, o ator - ou de Paudalho - para mim, que nem sei onde estou, nem sei que faço aqui, pergunta a personagem, no escuro.
Uma mulher dorme ao lado, mas o maracatu rural, o caboclo de lança, com sua plumagem colorida, vermelho, azul e dourado, coberto da cabeça aos pés, somente os olhos à vista, com lança para o alto, descansada, sinos badalam em suas costas, quando se movimenta, peregrino.
Peregrino.
Que devo, desde sempre - e ainda - olhar e admirar?
Peregrino, a vida, a passagem.
Está de passagem.
Estrangeiro.
Está de passagem.
Sem dar nenhuma palavra, o caboclo de lança faz evoluções no palco.
Os chocalhos badalam, sinos que se movem, anunciam sua chegada, presença e passagem.
Nabuco, personagem, que pergunta quem é, quem está aí, quem sou eu, está sentado na ponta da cama.
Observa a evolução, os chocalhos repicam suas emoções, sentimentos e recordações.
Muros invisíveis se movem.
Fala da vida, em versos.
É uma peça em versos.
Olhai, olhai a vida, Nabuco.
Admirai como isso é bom, é bom demais, Nabuco.
Em sua peregrinação, no Carnaval, da Zona da Mata Norte ao Recife, o caboclo de lança vai e volta, em silêncio.
Nabuco o cumprimenta e ele parte, antes, dança, os chocalhos-sinos, repicam no coração de Nabuco.
Nabuco, como eu, como "Severino de Maria do compadre Zacarias, lá da Serra da Costela", do ladinho da Paraíba, passou o muro invisível e imaginário.
Um muro que segue da imaginação, chega perto, do ladinho do rio Capibaribe, até os mangues de Recife e vai dar nas arrebentações do porto, "onde o mundo começa" e "o mar se extingue", para um banho salgado, no vergalhão do Pina. As pastoras cantam "olhai, olhai..."
Nabuco cita os muros invisíveis, desde as arrebentações de Recife, saltar os arrecifes, ir para o mundo.
Cada muro invisível é um arrecife mais alto que o outro.
Onde havia pichações de alto lá, Otelo, Nabuco, Esperanço, Confianço, quem seja, quem é, quem és, vivo-e-morto, estranho, também havia bem-vindo, amigo. O passista de frevo aparece, dança, devagar, bem devagar, sombrinha na mão, e segue os versos de Nabuco.
Todo o poema-peça é feito de versos sobre a esperança de que a vida seja fácil, doce e simples.
Para todos.
Imagens de remadores com as tintas do Barrozo, do Náutico e do Sport flutuam no Capibaribe azulado da manhã, acompanhados por golfinhos pequenos, cinzas-de-papo-branco, fazem voos-mergulhos no ar, surgem das águas para as águas, de passagem por Baobás, sinal de que por ali se assentou gente de Angola e do Congo, com tambores e atabaques, esperanças e medos, e seguem os versos de Nabuco, que um dia saiu de Recife, como Quixote, em busca de Dulcinéa, para encontrar a vida Diadorinha que não estava em Recife.
Diadorinha, a vida, como Dulcinéa, a busca, talvez só esteja em um lugar: na esperança que moveu Quixote cruzar seus muros invisíveis, enfrentar seus medos como gigantes. Nabuco, aquele que anda e f**a quieto, lamenta: a vida Diadorinha - sorriso, coração e conversa ensolarados, para dia e noite, por dentro das vidas -, talvez, não exista.
Ou bom, bom demais, seria viver e dar de cara com as esperas da esperança, porque isso - ou esse - é o mais difícil muro invisível da imaginação para p**ar: aceitar e olhar, e olhar a vida. Admirar, e admirar a vida, e como isso é bom, como isso é belo, como isso é bom, é bom demais.

[Para Guile e Tataco, nascidos à beira dos arrecifes e das arrebentações, ora azuladas, ora esmeraldas, ora verde musgo, mas sempre quentes e ensolaradas. Para Aldomar Conrado, ainda vivo por aqui. ]

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MÍTICA ILHA
Por DANIELA PACE DEVISATE, com arte de DANIELA VICENTINI

A PRIMEIRA COISA QUE BENJAMIN NOTOU, quando chegou a Capri, foi a luz dourada que banhava tudo. Pincelava toda a paisagem, como um monge medieval faria, num manuscrito precioso. Essa luz penetrava em seu cérebro, varrendo todos os pensamentos sombrios. Depois, o mar era onipresente, em tons que pareciam de mentira, do verde-turquesa transparente, ao azul mais profundo. A linha do horizonte parecia esfumar-se, azul sobre azul. Formações rochosas imensas, os Faraglioni, preservavam o aspecto selvático do lugar. Eram três picos rochosos de cem metros de altura: o primeiro, Stella ou de Terra, o segundo, Faraglione di Mezzo, e o terceiro, Faraglione di Fuori ou Scopolo. O di Mezzo tinha uma abertura, como um portal, por onde podiam passar os barcos. Em seu topo, antigamente, se acendiam fogueiras, para que os marinheiros não se perdessem. Daí, derivava seu nome, pharo, em grego, farol, luz aos navegantes. Também, estavam presentes em mitos e lendas. Segundo Homero, esses picos seriam as pedras lançadas por Polifemo, contra Ulisses. E Virgílio, em sua Eneida, os indica como o lugar onde viviam as sereias. Quem passasse pelo Faraglione di Mezzo, o pico do meio, de barco, ao luar, talvez confirmasse a veracidade da lenda. A vegetação praticamente intacta e as casas antigas e coloridas, completavam o encanto de qualquer viajante, ainda mais um viajante fanático, como ele. E para completar, a brisa marinha acariciava seu rosto, como a mão suave de uma namorada. Sim, tinha sido muito bom seguir o conselho de ****, para sair da crise depressiva, causada, em grande parte, por seus problemas financeiros, mas também, pelo naufrágio do seu casamento. Sua mulher, Dora, estava apaixonada por outro homem. Ele, também, já tinha vivido uma paixão intensa por uma talentosa escultora, e na verdade, nem sabia se a tinha esquecido completamente.
Aportou com uma pesada bagagem de mão, pois carregava alguns livros e os apontamentos (contando com as mais de seiscentas citações) para trabalhar em sua tese, além do indispensável guia para os viajantes, o Baedaker. Pretendia alugar o quarto em cima do café na Piazza, o Zum Kater Hiddigeigei (o gato Hiddigeigei). Um verdadeiro ponto de encontro transnacional de artistas e intelectuais. Alemães, russos, ingleses e italianos, bebiam uma excelente cerveja, enquanto discutiam arte, literatura e política. O café servia de salão de arte, pois não poucas vezes, seus frequentadores pagavam a conta com obras de autoria própria, mas o lugar também funcionava como casa de câmbio, trocando vários tipos de moeda pela moeda local, sem cobrar muito por isso. Aliás, os baixos preços tinham sido um importante requisito em sua escolha. Como se não bastasse, também funcionava ali um sebo, com venda e troca de livros. No momento, o café era gerido por um simpático casal germânico, mas a antiga família proprietária, Dom Peppino Morgano e seu filho, Mariano, tinha escolhido o nome em homenagem ao gato do poema de August von Scheffel , escrito ali em Capri, em 1853 . E com efeito, junto a uma divertida pintura de um gato preto, que cantava, no alto de uma torre, estava o poema, numa bela caligrafia em nanquim, e emoldurado:

“ L’uomo è tutto un traff**are / L’uomo un gran batti e ribatti / Ben cosciente del suo fare / Siede il gatto sopra i tetti! / O napoli, paese d’ogni bene / Terra degli dèi banchetto / Sorrento, a te si viene / Sorrento, dei tetti il Tetto! “

[ O homem é tudo uma agitação \ O homem, tantas idas e vindas \ Bem consciente de seu fazer \ Senta-se o gato sobre os telhados! \ Oh Nápoles, lugar de todo bem \ Terra dos deuses do banquete \ Sorrento, a ti nós vamos \ Sorrento, dos telhados, o Telhado! ]

Cansado, com o paletó numa das mãos e a mala na outra, mesmo assim, ele não pôde deixar de sorrir. Antes de mais nada, sentou-se e pediu uma cerveja artesanal para repor as forças. Uma senhora, a gentileza em pessoa, o atendeu, falando com ele, perfeitamente, em sua língua natal. O que mais podia querer, sentado ali, na fresca hora do crepúsculo, sem pensar em nada, sem nenhuma preocupação, nem mesmo com dar forma a seus pensamentos. Deixar-se estar, ideias ao léu, devaneios, lazer mental. Berlim estava longe, Dora e sua nova paixão estavam longe, e o pequeno Stephan, que nunca tinha sido muito próximo do pai, estava mais longe do que nunca. Também o pesado encargo financeiro parecia sem importância, agora . A única coisa que tinha importância nesse exato momento, era desfrutar o exato momento. O guia não tinha mentido ao dar três estrelas para a cerveja do Gato Hiddigeigei. Conforme anoitecia, foram chegando os frequentadores habituais, bons bebedores, alguns jogavam cartas, na mesa ao lado, uma dupla se entretinha com uma partida de xadrez. Poucas mulheres, mas uma ou outra alemã sorriu para ele, reconhecendo um conterrâneo. Chamou a dona do estabelecimento, pediu um sanduíche e perguntou do quarto no andar superior, se estaria vago, por acaso? Um alívio que sim, ele não tinha reservado nada, e já era tarde. Ela o acompanhou, indo à sua frente, pela escadinha rústica de madeira. Pegou do molho de chaves que trazia à cintura, e abriu a porta, revelando uma habitação limpa e espartana: um leito de ferro, com lençóis imaculadamente brancos, um armário antigo, uma cômoda com um jarro de louça para lavar-se, um pequeno espelho oval, uma mesa com uma cadeira, debaixo da grande janela, que abria para a rua.
- É perfeito, fico com ele.
- Ótimo, doutor. Ficaremos felizes, meu marido e eu, em ter uma pessoa tão distinta aqui, conosco. Posso servir as refeições, a combinar, se quiser. Agora, acho que gostaria de descansar, não é mesmo?
- Certamente, minha cara senhora. É uma viagem um bocado longa…
- Sem dúvida, doutor. Pretendemos visitar Berlim até o final do ano, sinto falta dos parentes de lá. Bem, fique à vontade, se precisar, é só chamar.
- Muito obrigado.
Ela sorriu, seu rosto largo quase ficou bonito e ele reparou como seus olhos azuis eram incrivelmente claros. Quando fechou a porta, ele despiu a camisa e ficou apenas com a roupa de baixo, lavou o rosto e as mãos na água fresca do jarro, mergulhando várias vezes o rosto na bacia esmaltada. Enxugou-se na pequena toalha branca e começou a desfazer a mala. Tirou o grosso manuscrito, os papéis e apontamentos esparsos, organizou tudo o que pôde na estreita mesa de trabalho. Gostava de trabalhar durante a noite, adentrando pelas madrugadas, até que o sono o vencesse. Esse trabalho o consumia já há algum tempo, era a sua esperança, a possível porta de entrada para a vida acadêmica, a um cargo que daria a tão necessária estabilidade, para que pudesse continuar a sua obra. Talvez conseguisse terminar esse ano, aqui, nessa ilha tranquila e bela. Pegou o último trecho para reler, mas primeiro abriu a veneziana, deixando entrar o aroma noturno e a lua esplêndida, cheia, que invadiu o quarto. Canceriano que era, nunca f**ava indiferente ao satélite e suas mudanças, que cambiavam também o seu humor, em vários tons. Era uma lua soberana, majestosa, uma rainha com um séquito de estrelas, e ele parou, fascinado, enquanto lembranças de infância, do luar penetrando seu quarto de menino, o mergulharam, subitamente, num passado remoto. A infância também era, para ele, uma espécie de ilha, que ele podia visitar de vez em quando, nos momentos difíceis e solitários, especialmente, mas, até mesmo nas horas felizes, ele podia repentinamente partir para esse lugar interior, e as pessoas ao redor se sentiriam invisíveis. E ele reencontraria a pergunta que o assombrava, quando era ainda era morador da ilha da infância: por que razão existem coisas no mundo, por que razão existe o mundo ? Tantos anos haviam transcorrido desde então, e ele não tinha se aproximado nem um milímetro da resposta.
À luz da lua e do candeeiro, retomou suas últimas anotações. Discorria sobre o herói, o mártir, o tirano e a princesa casta. Estava em seu elemento, era um peixe nadando naquele oceano de papel, sem sentir as horas passarem. Só parou para dormir, quando percebeu que a lua estava minúscula, bem lá no alto do céu, e o amanhecer estava próximo. Então, fechou a janela, tirou os sapatos e estirou-se sobre a cama, do jeito que estava. Logo, sonhava, com um palco onde figuras de papelão, o rei grisalho e gordo, gritava impropérios, uma princesa com longa camisola se enforcava nos próprios cabelos, e um jovem portava duas espadas, cortando o sol ao meio com uma delas, fazendo uma poça de sangue dourado. Uma platéia de símios aplaudia, e de um balcão, uma matrona morena, de rosto nobre, acenava para ele, completamente nua. O céu pintado de estrelas, um tanto tortas e malfeitas, principiava a ruir, e pelas rachaduras se podia ver o céu verdadeiro, com estrelas cintilantes como a Verdade. Entretanto, farrapos de forte luz solar, vazada das persianas, o despertaram. Acordou impressionado pelo sonho, e o anotou, antes de começar a se lavar e se vestir, para o café da manhã. Desceu a escada e encontrou Frau Gretchen, preparando a mesa para os hóspedes mais preguiçosos, pois a maioria já tinha feito o desjejum e saído para algum passeio. Ela sorriu para ele:
- Bom dia, doutor Benjamin. Dormiu bem?
- Sim, muito, obrigado. Trabalhei até de madrugada, em companhia da lua. Depois, ela me deu de presente alguns sonhos peculiares.
- Ah, tudo isso deve ter aberto seu apetite, não? Sente-se, por favor.
Benjamin acomodou-se, sozinho na mesa. A toalha rendada, as flores dispostas num vaso de cristal, o café cheiroso e o maravilhoso queijo de cabra, o deixaram de
excelente humor, e ele comeu com apetite. Depois de comer, pegou um livro e sentou-se à porta do café, trocando algumas palavras em francês com um russo, um ex-oficial da Marinha, que acabara de conhecer. O café era muito bem localizado, e dava para a Piazza, onde hoje, acontecia o mercado semanal. Barracas de peixe, frutas, artesanato, flores. Os vendedores cantavam e gritavam seus bordões, em italiano, chamando a atenção dos fregueses para seus produtos. Era alegre, ruidoso e colorido. Benjamin divertia-se, sentia-se muito em casa, ali. Foi quando reparou numa figura de mulher, atravessando a praça, de mãos dadas com uma criança. Era uma beleza eslava, entre trinta e trinta e cinco anos. Mas, parecia mais jovem. Tudo nela era jovem, ágil, uma estranha vivacidade emanava de seu corpo. O rostinho era delicado, lembrava o de uma ninfa, mas seu olhar era petulante. Uma chama silenciosa queimava dentro deles, crepitando. Olhos rasgados, dois pequenos abismos, dois buracos negros vorazes, gulosos. Ao lado dele, duas moças, cabelos quase brancos de tão loiros, conversavam em voz muito alta, em alemão. Alemães e seu eterno fascínio pela Itália, culpa de Goethe e seus diários? Mas, nem as duas moças falando em sua língua, poderiam tirar dele a atenção, toda voltada para aquela jovem mãe. A seguiu com o olhar, enquanto ela comprava um maço de flores vermelhas e agradecia, sorrindo. Seu sorriso era fugaz e inesquecível, uma estrela cadente. Porque via tanto o céu naquela mulher, uma desconhecida? Ficou com sua imagem na retina, por todo o resto do dia. No almoço e depois, ao flanar pelas ruas estreitas e tortuosas. No final da tarde, ao observar o mar. Adentrando a noite, a interminável noite perfumada de flores, com a lua que brilhava nas pedras do calçamento. Bebeu um vinho branco, tentando adivinhar seu nome e seu país de origem. Subiu ao seu quarto, inspirado, retomou os trabalhos. “Que floresça a justiça, que reine a crueldade, que triunfem a morte violenta e a tirania, para que Venceslau possa subir vitorioso ao trono, passando por cima de cadáveres ensanguentados como se subisse degraus “. Releu, escreveu e revisou seu texto por largas horas, enquanto o luar bailava no chão do quarto, e luz e sombra inventavam figuras na parede. A chama do candeeiro ardeu até quase de manhã, incansável, como o seu espírito. Finalmente, exausto, deitou-se, sem ao menos tirar os sapatos. A última coisa que viu em sua tela mental, antes de perder para o sono, foi a efígie do rosto da bela estrangeira. Passou a persegui-la, nos próximos dias, com a obsessão de quem busca decifrar um enigma. Do seu jeito de caranguejo, um passo para a frente, um para o lado e dois para trás. Mas, o fato é que a perseguia. A observava do café, disfarçadamente, sentado com um livro, pela manhã, quando ela geralmente saía, lá pelas onze (ele via pelo enorme relógio situado no campanário da igreja), ou escondido atrás de uma árvore, ou sentado no banco com seu bloco de notas, ou ainda, encostado ao muro, casualmente, no caminho que ela costumava fazer com a filha, na volta pra casa. Sempre a rodeando, como um asteroide ao redor de um planeta. O planeta Mulher. O planeta dela tinha uma força gravitacional imensa, ela atraía asteroides, planetas e sóis, formando ao seu redor uma constelação. Quantos homens geniais, seus amigos, admiradores e amantes faziam parte desse mapa celestial? Muitos, ele ainda viria a conhecer e brilhariam em sua vida. Por ora, apenas sofria, daquela felix dolor, a dor feliz dos que amam.

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