A ideia de um homem total face a um mundo total é medonha. A moral da produção não é um conto. Contrariá-la é uma ilusão e cansa.
A imagem elíptica de um homem que sobe as escadas circulares de uma biblioteca infindável, procurando todos os livros, ambicionando folhear todas as páginas, ler todas as frases, é a quimera Borgesiana que hoje impende sob qualquer cidadão dado à leitura. A hiper-produção - ou o êxtase da produção e da reprodução - é a moral do nosso tempo. Invadiu - como na "Fauna de espelhos" - todos os corpos (
o social e o individual) e ninguém lhe escapa. Ir na corrente é o mais fácil e o logro. E os nossos passos serão sempre curtos. No entanto, desde o sinal de partida, no mínimo dos mínimos, não queremos engolir o conceito que veicula a industria de conteúdos (cinema, televisão, livros, etc.): para sermos mais homens - mais perfeitos, mais belos, mais sobre-humanos - e compreender o mundo, explicá-lo, analisá-lo, estandardizá-lo, normalizá-lo, enfim, reduzi-lo àquilo que somos ou nos convém, precisamos de ler todos os livros, ver todos os filmes, sintonizar todos os canais... sob pena de o mundo se tornar ininteligível, para que nada se perca ou precipite. Ora, nem todos os livros...
Esta lógica - que levada ao seu extremo faz/fará de cada livraria um bazar indiano, pejado em contínuo por uma lógica que transcende os seus próprios princípios e objectivos - em vez de nos aproximar do mundo, do de-fora, do "tudo" e do "todo", deixa-nos às aranhas e gera sem cessar o inócuo amargo de boca (tenho mil e tal livros à cabeceira para...), e cerca perigosamente o nosso poder de autonomia (eu tenho de...) conduzindo ao perigoso niilismo do excesso. O nada como a sombra do tudo. Ou como o motor-de-busca se torna o motor da emboscada. O homem para caminhar não precisa calçar e descalçar toas as botas deste tempo. Por essência, somos todos pé-de-chinelo e é a ortopedia deste tempo que cheira muito mal. A muitas milhas de distância...
Trocada por miúdos, preferimos que o leitor que nos procure saiba que determinados livros serão alvo de mais atenção, estima, afecto, sem que exista a pretensão de que as nossas escolhas sejam mais do que isso: meramente as nossas simples escolhas. Nem melhores nem piores. Mas para a Gato Vadio é crucial escolher e poder decidir para não cair no canto da sereia do atol da cultura da produção. Porque afinal de contas, e se lêssemos todos os livros, se chegássemos à última prateleira, da última biblioteca, sim, e depois?